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Livro Escritores da Periferia

Livro Escritores da Periferia
Uma produção dos alunos da escola Edílson Façanha

segunda-feira, 2 de junho de 2014

PRIMEIRA CRÔNICA "ESCREVENDO O FUTURO" - Bar doce bar

Bar doce bar

O dia é incansável e não termina. O sol ainda resiste e tinge de vermelho os olhos de quem ficou no boteco o dia todo. O bar está cheio de homens, a maioria maduros ou apenas envelhecidos. Uma criança passa, compra duas balinhas e vai embora. Mulheres só passam o olho lá dentro e quase nunca entram. Para os bêbados de plantão tudo é normal e sempre igual.

Não sei se são notados. Penso que só por alguns. Há aqueles que os cumprimentam. As pessoas se acostumam a vê-los sempre ali, cartas marcadas, vidas marcadas. São os ex. Ex-maridos, ex-alunos, ex-trabalhadores. Agora são exilados e se tornaram excluídos.

No passeio está o Tesourão, o cachorro que fez da rua sua moradia. O bêbado, o cão, rumos perdidos e solidão.

Nossos bares... Neles os amigos se encontram, jogam conversa fora. É onde uma mãe passa e compra um lanche para o filho. Onde o retireiro toma um café fresco e saboreia um pastel quentinho.

Na praça histórica da pequena cidade os bancos estão ocupados. São funcionários públicos, lavadores, balconistas. São comerciantes, artesãos, pedreiros, motoristas. O dono da Sinuca, o bar mais antigo, enquanto vende, vai instruindo os fregueses a desenrolar papéis: INSS, inventários, exames médicos. Às vezes ganha um frango em troca. Outras, um muito obrigado. E sempre amizades. Se chega um forasteiro, dá dicas dos pontos turísticos. É um guia no balcão.

No bar do Dirceu, os aperitivos acompanham os desabafos dos bêbados. As rodas de viola dão o tom para o sol se esconder de mansinho e dar lugar à lua tímida. Especial, especiaria, som saboroso para o fim do dia.

No outro bar, o balconista é ouvido por toda a praça. Daniel, voz estrondosa. Deve ser por isso que eu também falo alto, herança dele, meu pai. Aquele jogo clássico reúne homens que cercam o balcão. Estão ansiosos demais para se sentarem. Tudo é discutido, desde o gramado sintético até o gol irregular. As cadeiras esperam pacientes para o carteado. Aconchegante, relaxante cantinho.

Cada boteco tem sua personalidade, seu carisma. Mas em dia de procissão todos eles cerram suas portas pedindo bênção ao santo. Com respeito, as pessoas enfeitam as janelas de suas casas e a banda de música embala a legião de fiéis. É bonito ver como o povo participa.

Nos bares o espaço é democrático. É onde as ideias de todo mundo são apresentadas e jogadas a todos os ouvidos. Em volta de uma mesa, todo assunto se resolve: os problemas do mundo e tudo o mais. É a filosofia do botequim. Estamos falando de uma tribuna popular. Quer debater? Pode ir lá. É política, futebol, bipolaridades. Ali é prestado serviço de comunicação: à boca pequena todos ficam por dentro das novidades. Quem chegou, quem partiu, morreu, brigou ou separou. Também eu deixo meu rastro marcado e vou a um
desses bares, apanho o meu Folha das Vertentes e, a passos largos, volto para casa para ler a coluna do cronista, este “poeta do cotidiano”.

O dia se vai assim e as portas só fecham depois de toda a cidade, tão calma, ter adormecido. E a rotina faz dali a segunda casa de muitos homens. Bar doce bar. Ele exerce papel fundamental na cidadezinha. Nele todos se tornam iguais e se unem para poder suportar a rotina do ilusório.


Aluna: Sara Viviane Almeida de Oliveira
Professora: Kaline Shirley da Silva Nascimento
Escola: E. E. Tarcísio Maia; Cidade: Pau dos Ferros – RN




Eu, tu , ele e nós

Não diria que esse fato é comum apenas onde moro, porque não é. Mas, em meio a essa euforia ufanista e ao otimismo em que nosso país se encontra, diria que as pessoas preferem vendar seus próprios olhos para não vê-los em qualquer lugar: tentar mantê-los, de alguma forma, escondidos em becos tétricos; ignorá-los até é muito comum. Eles não parecem importantes, mas estão sempre lá, quer você os veja, quer não.

Eu particularmente prefiro não ir a festas. Parece-me um mundo à parte comandado pelo nosso mundo, e essa junção me aterroriza. Na ocasião a que me refiro, porém, estava eu na feira promovida pelo município para comemorar sua emancipação política, a Finecap. Não me orgulho de dizer-lhes isso, mas aquela foi a primeira vez que eu notei que eles existiam. Certamente, muitos deviam ter percebido antes de mim, mas em uma festa tão importante quem se importaria com eles? A noite seria longa para todos... Para eles, principalmente.

Estava eu em uma barraquinha de sorvetes que ficava no centro da feira, próximo ao palco. Meus pais pediram uma pizza, um sorvete para mim e minha irmã, pizza novamente, mas para meu avô. Sentei em uma cadeira de ferro dobrável próxima a uma mesa amarela, já meio enferrujada, de modo que ficasse de frente para as pessoas. O vento começava a ficar frio com a chegada das altas horas, porém mais e mais pessoas chegavam conforme os
ponteiros do meu relógio avançavam. Alguns olhavam os estandes, outros, como eu, ficavam com a família em barracas de lanche, enquanto a grande maioria esperava a chegada das bandas que iriam tocar. É sempre assim. Ninguém vem pelos eventos culturais, apenas para dançar até o dia seguinte.

Enquanto tomava meu sorvete e minha família conversava, passei a observar o ir e vir incansável das pessoas. Eram muito diferentes, percebia-se logo; entretanto, estavam todos vestidos com o mais apurado esmero; compraram perfumes franceses especialmente para a ocasião. Meninas de chapinha e de jeans muito justos, maquiagem e sempre alguma bijuteria. Os garotos passavam conversando, com seus cabelos moicanos reluzentes pelo gel, exibindo seus tênis novos em folha. Crianças com suas roupinhas infantis recém-compradas diante da aglomeração e dos vendedores de pulseiras brilhantes, sempre de mãos dadas firmemente com seus pais. Os adultos, também elegantes, esbarravam vez por outra neles, os únicos com roupas gastas e desbotadas. Não pediam desculpas. Seguiam em frente como se não valesse a pena olhar para trás, ou mesmo para a raquítica mão estendida que pedia tantas vezes uma moeda.
Os garotos magrinhos passavam carregando sacolas repletas de latinhas de alumínio que amassavam com os pés. A tez morena era quase unânime, variando bastante nos tons. Os cabelos negros, despenteados e malcuidados, balançavam ao vento por precisarem já de corte. Alguns usavam sandálias visivelmente velhas e desgastadas. Muitos andavam de pés descalços. Carregavam no olhar inquieto contraste: a esperteza que eram obrigados a ter para sobreviver e, ao mesmo tempo, temor.

Eles eram muitos, por toda parte. Anônimos em meio a tanto garbo, procuravam meios de superar suas não poucas dificuldades, em silêncio. Não reclamavam de parecerem invisíveis.

Voltei a mim quando minha mãe me chamou para irmos assistir ao show. Percebi que o sorvete acabou derretendo. Não importava. Nesse momento, a minha venda acabara de cair, e se manteria assim desde que o espectro do egoísmo não voltasse a reatá-la.

Lembro-me de que no dia seguinte falei sobre todos eles a quem eu conhecia, para que também suas vendas caíssem e passassem a valorizar a existência desses que por aí vivem como se não fossem também parte de nós. Talvez, se o fantasma do egocentrismo voltar a assombrá-los, terão para combatê-lo uma certa luz denominada solidariedade, que orientaria não só eles, mas você, eu, nós.

Aluna: Caroline de Farias Couto da Silva
Professor: José Moacir Fortes Saraiva
Escola: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia; Cidade: Valença – BA

O afago inesperado

Estava sentada havia horas no banco desconfortável da Praça da República, centro de Valença, pertinho da Rua Deocleciano Gomes, onde moro. Nada me chamava a atenção. Apenas o cansaço e o sono me tomavam. Três semanas de avaliações e trabalhos escolares esculpidos na minha postura encurvada e no meu olhar caído. De súbito, o som de buzinas me fez despertar para um engarrafamento que estava acontecendo na minha frente; nada incomum: uma fileira de carros de variadas cores e diversos modelos, novos e velhos, motoristas estressados e impacientes.

Já voltando a abaixar o olhar, um garoto passa correndo em direção à rua. Passaria despercebido por mim, como tantos outros, jeito malandro, roupas velhas, pouca idade (entre oito e dez anos) e uma caixa que trazia nas mãos. Contudo, não foi assim dessa vez. Minha curiosidade feminina foi aguçada e me fez observar o que faria ele indo em direção aos carros. Parou ao lado de um veículo prata e fez sinal para que abaixassem o vidro fumê. De imediato pensei que se tratasse de um assalto, mas logo desisti da ideia, pois havia
muita gente no local e era apenas uma criança.

A realidade é que a infância está bem mais curta em nosso país, principalmente para os mais pobres. Na minha cidade esse triste fato pode ser fotografado nas ruas. Mas ainda custa admitir e aceitar isso. Bom, no carro, uma senhora aparentando mais ou menos sessenta anos, aparência cativadora e rosto bondoso, perguntou com tranquilidade o que ele desejava. O garoto abriu jeitosamente a caixa e mostrou-lhe. Curiosa, me perguntei: “O que
há ali dentro?” Estiquei-me um pouco e vi balas, jujubas e pirulitos. A senhora, como eu, fez uma expressão de agrado, deixando o garoto animado. Entregou algumas moedas a ele, pegou umas balas e, num gesto amável, alisou os cabelos enrolados, curtos e pretos do menino.

Nesse momento, ele parecia estar no melhor de todos os lugares. Fui contagiada por aquela sensação. Em seguida, ela fechou o vidro. O menino ainda estava parado e feliz quando foi despertado por uma garotinha, também com uma caixa na mão, que o impeliu
a continuar o trabalho. Como saindo de um sonho, o menino seguiu para o próximo carro no qual havia uma jovem. Ao ver os doces, ela afirmou não ter dinheiro. Nesse momento a surpresa: ”Então você passa a mão na minha cabeça?”, perguntou o garoto.

A jovem ficou espantada. Novamente sons de buzinas. Ela deveria seguir, pois o semáforo deu passagem. A moça partiu. Foi-se também o menino. Ficou em mim a emoção e a consciência da carência afetiva dos meninos do lugar onde moro, meninos que, apesar de trabalharem o dia inteiro sem garantia de dinheiro, não passam horas sentados, lamentando cansaço e sono, como eu. Nesse dia aprendi que sou dramática.

Aluno: Ericles da Silva Santos
Professor: Luciano Acciole Gomes
Escola: E. M. Vereador João Prado; Cidade: Japaratuba – SE

A pipa, o Bispo e o Azul

Ouvi barulho e vozes crescentes, um zum-zum-zum empesteava o assentamento onde moro. Quanto mais pedalava, mais me embrenhava num corre-corre alucinado: meninos, mulheres, todos corriam para a frente do barracão. Que enxame é esse? Que cabrunco está acontecendo?

Era o Pipa! De novo o Pipa? Dessa vez ele tinha ido longe demais. Estava no alto do pau de sebo, quase pendurado no topo. Aquele mastro tinha sido colocado ali dois dias antes. A festa ia acontecer no final de semana: algodão-doce, corrida de ovo e pau de sebo.

“Desce daí, seu doido!” Uns jogavam areia, pedras...

O Pipa era mestre na arte de fazer papagaio. Quando não estava na roça ajudando os pais, estava viajando nas asas das pipas. Ele se isolava. Dizia que gostava da solidão. Solidão a três: ele, a pipa e a imaginação... Logo eram seis e depois eram muitos...

Era diferente. Era mesmo feio. Chamava-o de louco. Particularmente, ele tinha algo que me fascinava. Vez em quando soltava um sorriso azul.

O artista de caçar passarinho e criar pipas estudava comigo, e na mesma sala. Outro dia, na escola, o professor falou do filho mais ilustre da nossa cidade: Arthur Bispo do Rosário. Um misto de desapego e curiosidade tomou conta da turma. Pipa foi um dos que deram uma chance ao professor. Ouviu tudo atentamente. O professor falou da importância de a gente incorporar o Bispo como elemento nosso. Ele lhe disse que somos conterrâneos do homem e desconhecíamos sua obra, o seu valor, a sua história. “As pessoas passam pela estátua do Bispo, na entrada da cidade, e falam mal, e como falam mal: louco, preto, feio e pobre”.

Então ele nos pediu que acrescentássemos a palavra “gênio”.

— Gênio?

Aí o Pipa gritou: “Louco, preto, feio, pobre e gênio!” E riu! Riu tanto que tumultuou a aula. Subiu na carteira e foi só presepada, muganga. Imitava o Bispo do Rosário, com altas doses de esquizofrenia.

“Quer levar um sopapo, menino? Está ficando mais besta ainda. Deve ser a escola!
Já disse que Jamerson nunca foi bom da cabeça. E está piorando!”, gritava o pai, meio desesperado.

“Não ligo, não! Sei que não sou gênio, mas sinto dentro de mim que sou diferente, que vejo muito diferente dos meus irmãos. Eles não me perdoam por isso. Só minha mãe. Ela é a minha Nossa Senhora, sempre generosa.”

“Desce daí, meu filho! Você vai acabar matando sua mãe! Gente, ajude aí! Meu Pipa é sonâmbulo. Ele está é dormindo.”

Quando me viu no meio da multidão, fez cara de súplica. Não me fiz de rogado! Joguei a bicicleta e desbravei aquele pau de sebo. Não tive dificuldade. Aquele mastro já me conhecia. Agarrei o meu amigo pela cintura, a multidão uivou, berrou, decepcionada.

Parecia um anjo de olhos cerrados. Tremia os lábios, soltava gaitados. Na mão esquerda uma pipa azul. Resmungou. Abraçou-me. “Quem é que está aí? Qual é a cor da minha aura?”



Aluno: Gabriel Batista da Silva
Professora: Maria Inês Resende
Escola: E. M. Crispim Bias Fortes • Cidade: Barbacena – MG

A quadra velha

Aqui no lugar onde vivo não tem cinema, lan house, discoteca... aqui tem cavalo, rio, cachoeira, gente que conta histórias... E, acima de tudo, aqui tem uma quadra. Uma quadra velha. Velha e pequena, só tem espaço para seis jogadores de cada lado. Uma quadra velha e pequena onde cabe inteira a nossa imensa alegria.

Ali a bola rola, enrola, rebola, embola, solta, samba, sapateia... Ali vale tocar a bola de chuteira, de chinelo ou de pé no chão. Ali vale jogar menino, menina, velho, magrela e gordão. Vale entrar de sola, de carrinho e até de bicão. Vale arrebentar o joelho, arrancar a ponta do dedão... tem gol contra, bola murcha e bola fora.

O que importa é que quando a bola rola na quadra velha o mundo para. As árvores e as casas espiam. As pessoas que passam pela estrada de terra não resistem, param, assoviam, batem palmas. Os moleques perdem a hora que se perde no tempo. Cada pai vê em seu filho o grande craque e sonha com seu menino na seleção. Quem sabe 2014...

Ali, na quadra velha e pequena, adormece a tristeza, o cansaço, a desilusão... ali os homens se esquecem dos calos, das dívidas, das dores... ali os meninos são magos, são livres, são pássaros: transcendem, voam... Ali não tem zero, não tem senão. Só tem bola no chão. Ali eles são uma bandeira verde e amarela hasteada no sertão.

Isso, até que chega a noite escura e sombria. Ela, revestida de negro, faz arriar o sonho, despe a fantasia, cala a poesia.

Amanhã tem trabalho, tem escola. Dói o calo, o joelho incha, o moleque chora. E a quadra fica de fato velha e pequena. Fica ali, triste, silenciosa, no escuro. Fica ali à espera de que os meninos voltem logo e ressuscitem o momento mágico.

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