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Livro Escritores da Periferia

Livro Escritores da Periferia
Uma produção dos alunos da escola Edílson Façanha

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Sete de setembro e nossa história

Todos os brasileiros aprendem na escola que d. Pedro I proclamou a Independência nas “margens plácidas” do Ipiranga no dia 7 de setembro de 1822. A data, porém, não foi reconhecida imediatamente como o dia da Independência. Havia outras, mais apropriadas para um Império, principalmente o dia 12 de outubro, data da aclamação do primeiro imperador e também seu aniversário. Até 1826, esta foi mais importante do que a do Grito do Ipiranga. 
Naquele ano, o novo parlamento imperial designou cinco dias de festividade nacional, entre eles, Sete de Setembro e Doze de Outubro, que durante alguns anos foram considerados datas de igual importância.

Como se comemorava então os dias de festejo nacional na Corte, a capital do Império? Havia comemorações oficiais: uma grande parada das Forças Armadas (Exército, milícias e, depois de 1831, Guarda Nacional); um Te Deum (ofício religioso de ação de graças) na capela imperial; um cortejo e beija-mão no Paço da cidade. À noite, os habitantes costumavam iluminar as janelas das suas casas com velas ou lâmpadas de azeite, enquanto o imperador e boa parte da sociedade assistia a um espetáculo de gala em um dos teatros da cidade. O espetáculo sempre começava logo após a chegada do imperador e da imperatriz, saudados pela orquestra ou a companhia que tocava ou cantava o Hino da Independência ou o Hino Nacional, que tinha uma letra diferente da atual e nem sempre cantada nos eventos. Durante a parada e no início do espetáculo, dava-se vivas à Independência e ao monarca e, no teatro, poetas liam sonetos e outros versos comemorativos do dia durante os intervalos.
Estes festejos tinham fins políticos específicos. A parada mostrava o poder do Estado e arregimentava publicamente os cidadãos alistados na Guarda Nacional (composta de homens cuja renda alcançava a mínima requerida pela Constituição para o exercício da cidadania). No Te Deum, dava-se graças ao Todo-pode-roso. No cortejo, o corpo diplomático, as altas autoridades e boa parte da elite cumprimentavam o imperador e, ao beijar-lhe a mão (antigo costume português), mostravam seu respeito e reverência. No teatro, o imperador e a elite aproximavam-se, unidos no patriotismo. Os elogios reiteravam esta interpretação: Pedro I, segundo José Pedro Fernandes, um dos poetas “oficiais” do Primeiro Reinado:
“Fez abrolhar no solo Brasileiro
Todos os dons, os elementos todos
Da glória, do Heroísmo, e da Fortuna”
O aparente consenso em torno das duas datas de festejo nacional foi rompido em 1830 pela atuação dos Moderados e dos Exaltados, os grupos de liberais que contestavam as tendências cada vez mais autoritárias do imperador. Como parte da sua campanha, eles organizaram uma comemoração do Sete de Setembro na Praça da Constituição, atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, “onde um luzido e numerosíssimo concurso de homens, e senhoras se detiveram desde o anoitecer do dia 7 até a madrugada do dia seguinte”. Ao insistir que Pedro havia meramente seguido os desejos de todos os brasileiros no Grito do Ipiranga, e, portanto, “tornou-se digno de reinar sobre os brasileiros”, a retórica deste festejo oposicionista contestou a interpretação oficial da Independência. Depois da abdicação de d. Pedro I, em 7 de abril de 1831, com os Moderados assolados pela ameaça da violência popular que tomava as ruas do Rio de Janeiro, a Regência – que assumiu o poder em nome de d. Pedro II, então com cinco anos – se esforçou para manter as comemorações sob controle. Limitavam-se os ritos oficiais, e Evaristo da Veiga, o porta-voz dos Moderados, recomendou que “todos os Brasileiros que amam a pátria, sejam quais forem os seus princípios políticos” se abraçassem no Sete de Setembro. Não foi tão fácil manter a ordem, e durante estes anos conturbados as autoridades reclamavam da atuação dos “agitadores” que provocavam violência contra – portugueses ou adversários políticos. A morte de d. Pedro I, em 1834, tirou-o do cenário político e possibilitou seu retorno ao centro das comemorações como o fundador do Império, o príncipe liberal que deu os primeiros passos para a liberdade da nação.
Em 1854, durante o auge do Império, começou a campanha para o monumento a d. PedroI fundido na França e inaugurado com muita pompa no dia 30 de março de 1862, na Praça da Constituição, a estátua equestre comemorava tanto a proclamação da Independência como a Constituição, outorgada pelo imperador em 1824. Liderada por um grupo de homens intimamente associados a d. Pedro II e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), a campanha fazia parte dos esforços do Instituto no sentido de criar uma história oficial do Império.
Um ano após o começo da campanha da estátua, fundou-se a Sociedade Ipiranga na cidade do Rio de Janeiro para “arrancar da indiferença o aniversário da nossa emancipação política”. Contando com a participação de alguns dos homens envolvidos na campanha do monumento, a nova sociedade convidou os habitantes a restaurar o costume antigo de iluminar janelas e contratou bandas de música para tocar na Praça da Constituição, no lugar onde se erigiria o monumento. Logo surgiram outras sociedades patrióticas que, como a Ipiranga, financiaram fogos de artifício, construíram monumentos efêmeros e, durante alguns anos, libertavam escravos para comemorar o Sete de Setembro. A imprensa concordou que elas transformaram as comemorações. Um jornal descreveu “três noites de iluminação, salvas, girândolas e foguetes a mais não poder, músicas em coretos e pelas ruas, jantares  e  reuniões patrióticas”.  Em 1859, “milhares de cidadãos de todas as classes e posições” levantaram-se cedo “para saudarem o alvorecer do primeiro dia nacional”. Na Praça da Constituição, uma sociedade havia mandado construir um chafariz representando os quatro grandes rios do Brasil (o Amazonas, o Prata, o Tocantins e o São Francisco), que sustentavam um busto de d. Pedro I, rodeado por vinte colunas que representavam as províncias.
Os jornais enfatizavam que nestes festejos “populares” não havia nenhum indício dos “anárquicos exageros de mal-entendido patriotismo”, embora registrassem a prisão de capoeiras durante as comemorações. A libertação de escravos pela Sociedade Ipiranga, realizada pela primeira vez em 1856, foi recebida por alguns como “um pensamento muito nobre”, mas neste mesmo ano corriam boatos “pelas classes ínfimas” que todos os escravos iam “ficar forros nesse dia”. Era perigoso demais ligar o patriotismo à libertação de escravos, e apenas poucos foram alforriados nas comemorações da segunda metade da década. Só na década de 1880, em plena campanha abolicionista, a libertação de escravos se tornaria um ato patriótico comum no Sete de Setembro.
A onda de entusiasmo patriótico diminuiu tão rápido quanto surgiu. “Triste, desanimado, desceu ao abismo do passado o primeiro dia brasileiro” em 1862, ano da inauguração da estátua. D. Pedro II também reparou a “frieza” das comemorações deste ano, “atento o entusiasmo de há poucos anos”. Já na época da Guerra do Paraguai (1864-1870), os “ruidosos festejos” eram considerados uma coisa do passado.
Todavia, a forma das comemorações mantinha-se inalterada, como demonstra uma crônica em quadrinhos de 1883. Acordado de madrugada pelas salvas de artilharia, o caricaturista explicou que não pertencia à alta sociedade e, portanto, não foi ao Paço para assistir ao cortejo. Na Praça da Constituição, viu a estátua equestre de d. Pedro I embandeirada e os dois coretos construídos na forma de castelos. Grupos de “brava gente brasileira” se reuniam na praça, onde um poeta animado recitava versos patrióticos.
Nas décadas de 1870 e 1880, a Sociedade Comemorativa da Independência do Império coordenava esses festejos, pagava as bandas, e organizava uma vigília de 24 horas durante as quais o monumento estava iluminado. Em 1883, “uma formidável massa enchia a praça”, mas Cari von Koseritz, um viajante alemão, “não compreendeu realmente o que toda essa gente fazia ali, pois além da iluminação não havia absolutamente nada a não ser a música”.
Cada vez mais, o monumento tornou-se o símbolo de um regime a ser criticado. As charges publicadas nos jornais ilustrados da capital no dia Sete de Setembro chamavam atenção para as falhas do regime imperial. Mesmo a estátua parecia cansada da retórica oficial das comemorações. Em 1888, segundo Raul Pompéia, houve pouca animação. O “louvável empenho dos festejadores” da Sociedade Comemorativa não inspirou a população; apenas um punhado de “curiosos” se levantou cedo para ver a alvorada no morro de Santo António e poucos foram “suar a canícula no saguão do Paço” para assistir ao cortejo.
À medida que o Império entrava em decadência, também decaía o ritual cívico associado a ele. Já na época da inauguração da estátua equestre, liberais radicais contestavam a história oficial da Independência, que destacava o papel do primeiro imperador. Teófilo Otoni, líder da ala radical do Partido Liberal, publicamente recusou participar da inauguração, pois a estátua representava a Independência como “uma doação do monarca”. Ao contrário disso, Otoni traçou uma história da Independência que passava pela Inconfidência Mineira, o suplício de Tiradentes, e a revolta republicana de Pernambuco em 1817. O imperador meramente respondia ao desejo dos brasileiros pela Independência e, depois, traiu a nação quando fechou a Assembleia Constituinte em 1823. Depois da Guerra do Paraguai, republicanos levaram adiante este argumento. Em vez de conquistar a liberdade no dia Sete de Setembro, lamentou um jornal em 1882, os brasileiros ficaram sob “o odioso poderio da família brangantina” que tramou um bem-sucedido “apartamento de bens” em 1822. Rejeitou, com algum exagero, a “pompa faraônica” do dia Sete e argumentou que uma comemoração digna da Independência seria a construção de escolas, fábricas e museus. Não foi por acaso que, para os republicanos, Tiradentes tornou-se símbolo predileto; em 1890, a Praça da Constituição mudou de nome para homenagear o inconfidente, com alguns dos mais exaltados exigindo a remoção da estátua equestre de d. Pedro.
Nas páginas dos jornais e nas ruas da capital do Império, no dia Sete de Setembro, brasileiros discutiam o significado da Independência. Os festejos tornaram-se um espaço político onde se lutava pelas interpretações do passado para influenciar o rumo futuro do Estado e da nação. Todos (menos os escravos e, em determinadas épocas, os naturais de Portugal) eram brasileiros e comemoravam a Independência, mas ainda se discutia o significado tanto de ser brasileiro como o da própria Independência.

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